Uma odisséia ao passado

Tudo começou com um pedido simples, e depois de vários percalços, uma revelação de cunho quase espiritual. Mas um link de cada vez.

Um bom amigo me pediu umas fotos de um fato inusitado: um alagamento de subterrâneo de um bloco comercial aqui em Brasília. Como sou muito cuidadoso com os meus backups, bem eu sabia que tinha as fotos, mas não tinha noção exata de qual ano tinha sido o ocorrido. Costumo fazer os meus backups semestralmente, gerando uma certa quantidade de CDs (então) e DVDs (atualmente), discos esses guardados com todo cuidado em embalagens escuras.

Como estava com tempo, comecei a dar uma olhada na ordem cronológica, começando por um tempo em que nem morava em Brasília. Primeira parada, um CD de 31/07/1999. Dei uma olhada no CD, fisicamente perfeito, e coloquei na leitora. O computador imediatamente abre uma janela apropriadamente nomeada LostWorld. Nossa, nem lembrava que chamava os meus backups assim…

E o que o eu de 1999 me preocupava em preservar? A instalação do AfterDark, ícones animados de mouse, a árvore instalada do ICQ (lembra? oh-ou!) e do Lotus Organize (ainda tenho saudades), uma incipiente coleção de AVIs (4, nenhum maior que 400 Kb), alguns jogos, instalação do GetRight (já volto nele), algumas imagens incluindo GIFs animados, bandeiras de países, papéis de parede do Digital Blasphemy e texturas (não pergunte).

A pasta de documentos tinha muito mais coisas do escritório do meu pai que minhas, mas na pasta de documentos próprios, um trabalho de Inglês Instrumental de 21/06/1998 (matéria que na UnB eu só consegui completar tem… 3 semanas), uma pasta seriamente chamada Cemitério e uma BestDocs, de onde eu tiro que a minha propensão de salvar matérias de Internet pelo seu nome vem de longe, muito longe. Um tal de “Procura-se profissional. Pelo amor de Deus.” começa assim: “Faltam profissionais de informática e o quadro provavelmente continuará assim por algum tempo.”. É, né?

MIDs! Eu colecionava MIDs! E MODs! Que velharia… que eu tanto adorava. E até, com grata surpresa, vejo que ambos funcionam perfeitamente hoje. Pastas essas copiadas e então ao som de MID\Conhecidas\STARWAY.MID, continuei fuçando esse meu passado digitalmente preservado…

Antivirus, ferramentas de controle remoto, Winzip, ARJ, manipuladores de registro, OCR e clientes de FTPs. O básico do básico do nerd pré ano 2000.

O próximo CD de backup é datado de Março/2001, um mês antes da minha vinda à Brasília. Muito originalmente chamado de LostWorld2. É o backup de adeus de um bom Pentium, montado no chassi de um 286 em torre, com o HD sustentado no lugar por um chumaço de sacolas plásticas de supermercado e uma gravadora de CD trazida do Japão com uma placa SCSI que não cabia no chassi (por óbvias razões), sem falar na BIOS da dita placa ter como default as opções em japonês. Ah, memórias de limas e exploração cega de menus…

Aqui já começa outro padrão mantido até os tempos atuais: a separação entre programas e dados. Nos programas, drivers de placas de rede, CLIPPER, primeiros cygwin baixados na unha e na esperança, IE 5.5, fontes (que nunca parei de colecionar), PHP e o driver do ZipDrive (que descanse em paz). Nos dados, umas poucas fotos digitalizadas, ainda eu magro e de cabelo curto, mais arquivos com trabalhos da faculdade particular. Oh… uma pasta desorganizada… Devia ser tudo o que eu tinha no Desktop no momento do backup. Outro (mal) hábito preservado.

Nessa pasta, algumas fotos de hackers e phreaks da cena de antes e então, hoje na maioria casados e sem filhos (e alguns ainda usando ICQs de 6 dígitos). Doidos de pedra. Fora isso documentos pela metade, ARJs aleatórios e outras quinquilharias do tempo em que se começava a esquecer as taxas transmissão medidas em bauds. Copiei os ARJs para olhar depois e continuei caçando as fotos pedidas pelo meu amigo.

Continuei fuçando os CDs e DVDs até achar tais fotos do alagamento. Encaminhei e rapidamente recebi um agradecimento do tal amigo, enviado diretamente do celular devidamente equipado com 3G. Carai… fotos tiradas de um caríssimo e raríssimo celular que tivesse câmera nos idos de 2004, enviados poucos anos depois para um celular com muito mais velocidade de acesso à Internet do que se quer podíamos almejar no tempo dos backups que eu tinha acabado de mexer.

A história poderia ter acabado ai, se não fosse os tais ARJs puxados do backup antes. Ainda com tempo livre, uns dias depois, me peguei pensando na quantidade de espanto e xingamentos que eu poderia gerar mandando as tais fotos aos tais delinquentes de então. Separei algumas, mandei algumas, e fui abrir os arquivos compactados atrás de outras prováveis. Mais memórias esquecidas entre tantas, a cada arquivo aberto, até que ficou um último, inacessível por conta de senha.

Um ARJ com uma senha que eu não lembrava (também… 10 anos depois), que não era uma das minhas senhas padrão. Sabia que era “alguma coisa boa”, porque tenho noção que era uma senha diferente que eu tinha aqui colocado. Então, inspirado, fui atrás de ferramentas de crack que tanto já fui solicitado para usar em arquivos de outrem, com estrondoso sucesso…

… e que estrito insucesso me deparei. @#$%! Como assim? Uma ferramenta, duas, três, dez… várias cópias da mesma ou ferramentas novinhas, nada conseguiu sequer raspar as primeiras letras.

Tão, tão perto, e assim tão, tão longe. E o pior é que Compactador de Arquivos do GNOME consegue até listar os arquivos, então eu SEI o que tem dentro do ARJ, mas não consigo extrair. AHHHHHHhhhhhhhh!!!

Pois bem, caçando ferramentas cada vez mais velhas, aparece uma alternativa inusitada, que consegue descobrir a senha de arquivos ARJ se e você tiver um dos arquivos presentes no ARJ “por fora”. Pois bem, navegando pela árvore de arquivos do ARJ, encontrei pastas de arquivos baixados, de sites pré-2000 ainda. Sem chance de lembrar os nomes do site, mas pacientemente fui usando o Google Imagens para ver se conseguia rastrear a mesma imagem, esperançosamente nos mesmos sites.

Uma, duas, três, dez quinze pesquisas, algumas dezenas de abas abertas (ei… lembra quando não existiam abas? enfim…). Várias imagens candidatas, que estimularam ainda neurônios que eu julga pra lá de aposentados. Lentamente o número de abas abertas foi diminuindo, em monótona contagem regressiva até o fracasso e … PIMBA! Não uma, mas três imagens, do mesmo e arcaico site!

Um site sem uma gota de JS, todo estático e sem frames, orgulhosamente estampado suas últimas datas de atualização manualmente realizadas em idos de 1998! Em pleno 2011, um feito e tanto!

Mas tive de me conter… uma coisa é o Google mostrar a imagem em primeiro plano, outra coisa bem diferente é o site ainda ter o mesmo arquivo original. Nesse ponto, eu precisava do exatoarquivo que existia dentro do ARJ, de forma que eu não queria me arriscar com a cópia reduzida. Cliquei no X da pesada janela em DHTML e esperei. Esperei e esperei e esperei, até quem uns poucos segundos viraram muitos, meio que temendo a triste constatação de ser um buffer velho de uma página inexistente, meio que esperançoso por o Google não preservar sites inacessíveis. E lento como foi, apareceu.

Trombetas no céu! Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

Lentamente naveguei até a página correta e baixei o arquivo. Aqui já deveria eu ter notado uma coisa impressionante, mas estava por demais pilhado em abrir o maldito ARJ com senha para me dar conta.

Passo seguinte, conseguir o tal utilitário milagroso. Novas pesquisas e o Google, cada vez mais calibrado pelas minhas consultas ia me levando a páginas que seriam mofadas se padecessem do apodrecimento da matéria. Até me levar ao endereço final da minha pesquisa:http://www.compression.dk/cmview/View?id=10005. Outra página que orgulhosamente estampa o seu último momento de atualização manual.

Nesse link achei o tal utilitário (SOLVEPWD, para os curiosos), mas por precaução quis baixar outro. Dois Ctrl+Clicks e… Maldição de JS OpenWindow. Nossa… como essa maldita tradição é velha! 13/07/2003. Reabro as abas e vou, pacientemente clicar “simples” nos dois links. O primeiro abre na hora e inicia o download. O segundo, bem… não funciona tão bem assim, me devolvendo uma mensagem mal formatada de “downloads simultâneos” e avisando de banimento de IP se insistisse mais.

Ora bolas… JS arcaico em site arcaico, dando pala a essa altura do campeonato. Mas enfim eu já tinha uma das ferramentas que queria e me mexi para movimentar os arquivos para um pendrive, e de lá para o notebook com Windows (essas ferramentas lammers/crackers, óbvio, só rodavam em DOS/Windows… oh, mundo da popularidade relativa). Nesse meio tempo ainda falei no Pidgin com conhecidos para só depois começar a movimentação de arquivos.

E eis que ao caçar o arquivo baixado o vejo com um .part, que é uma indicação de download não concluído pelo Firefox. Olhei para aquilo, piscando os olhos sem entender… É uma ferramenta mínima, de 4 Kb apenas. O download não completo só podia significar que o site todo estava com problema… Tsc, em cima do teste, teria de caçar outra versão. Mas, nesse momento, o .part some e o arquivo com nome correto se materializa. Ah… Momento Feliz!

Mas… como demorou. E ainda assim, consciente que o site antiquado funciona, volto a ele (bendito Ctrl+Shit+T) e me ponho a baixar outra ferramenta. Porém, dessa vez abro a janela de download para ver o comportamento do site (nerd eu, sim, eu sei).

Oh… o arquivo está baixando, sim, devagar mas está. 17 minutos para baixar 600 Kb. Ok… para não dar duas viagens no pendrive, resolvo esperar, e vou pegar um copo de refrigerante na geladeira. Já na cozinha, bebendo, me pego pensando em como é engraçado, a velocidade arcaica num site arcaico. Bem como nos velhos tempos, punha para baixar algo e saía do micro para fazer outra coisa. Provavelmente um truque configurado no Apache do servidor ou …

Congelo, arrepios subindo pela espinha frente a constatação óbvia, e ainda assim, ainda assim…

Largo o copo pela metade e volto ao micro, para ver a janela de download, ainda aberta. Uma rápida conta mental me revela que a estimativa de tempo está errada. De fato, vai levar muitomais de 17 minutos para baixar os 600 Kb, e ainda assim, vem o tal de arquivo, byte a byte, numa velocidade zen budista.

Será? É um site velho, com certeza. TODO VELHO. Pode a Internet ter pontos tão resilientes assim? A ponto de um site velho, abandonado a própria sorte pelo seu criador, fora do GeoCities mas hosperado em algum provedor proviciano perdido no mundo sobreviver a passagem das eras?

Pode um máquina velha, clocando pacientemente até o fim dos tempos, alimentada em links antiquados de tão lentos, mas seguramente lá, enviando dados a requisições enquanto existir IPV4?

Sim, existem boatos de servidores Slackwares ou mesmo SCO Linux, que dão zero manutenção a ponto de ser esquecidos como entidades físicas em sim, existindo apenas “lá”, seja onde for, servindo e funcionando como foram programadas para ser, somente descobertas através da busca física de seus cabos coaxiais a muito soterrados em poeira.

Ainda digerindo a revelação de tamanho feito, me peguei pensando no site anterior, de onde consegui reaver a imagem base da quebra da senha. Novamente reabrindo abas já a um tanto fechadas, voltei a ele. Lenta e pacientemente ele veio. E eu, agora com cuidado venerado, conferi as datas de atualização impressas nas páginas. Não satisfeito, mas com redobrado cuidado, cutuquei registros DNS e WHOIS, apenas para confirmar aquilo que a intuição demorou a captar.

Como um círculo completo, fechado em si mesmo, voltei, por causa da observação de um backup velho a um dos primeiros sites que eu naveguei em vida digital. Não era uma cópia da WayBackMachine ou uma versão moderna, mas efetiva e realmente o mesmo site, intocado desde então e mesmo assim, lá, firme e forte, o mesmo, até o último byte.

Lá e de Volta Outra Vez

Literalmente.