Luis Roberto Barroso no STF em 05/05/2011

Uma transcrição da eloquente e emocionante defesa do advogado Luis Roberto Barroso, perante o STF, com relação a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, em 05/05/2011.

É um post longo nesses tempos de velocidade e micro-mensagens, e para quem preferir ouvir no áudio existe a versão disponível no Youtube. Recomendo, fortemente, que se escute o áudio, acompanhando o texto transcrito.

 

 

Excelentíssimo senhor presidente, ministro César Peluso, excelentíssima senhora ministra, senhores ministros, ministro Luiz Fux, senhor Procurador-geral da República Dr. Roberto Gurgel.

Senhoras e senhores, é sempre um prazer, e uma honra, estar aqui nessa tribuna e poder merecer a atenção de vossas excelências.

Eu espero estar inspirado e a altura da importância desse momento para milhões de pessoas pelo Brasil afora.

Senhores ministros, o que vale a vida são os nossos afetos. O amor e a busca pela felicidade estão no centro dos principais sistemas filosóficos e no centro das principais religiões. A amor à Deus, para quem acredita. O amor incondicional dos pais pelos filhos. O amor dos filhos pelos pais, o amor ao próximo, que é essa bênção apresentada pela fraternidade. O amor próprio, que nos dá paz e segurança no curso da vida. Mas não o amor narcísico, que é o amor que se basta a si próprio. E por fim e por mais importante, o amor apaixonado, que é o amor de um homem por uma mulher, ou de uma mulher por um homem, ou de uma pessoa por uma pessoa.

A vida boa é feita dos nossos afetos. A vida boa é feita dos prazeres legítimos. A vida boa é feita do direito de procurar a própria felicidade.

De modo que o que se pede aqui em primeiro lugar, que esse tribunal declare na tarde hoje, é que qualquer maneira de amar vale a pena. E pronuncie a consequência natural dessa constatação. Ninguém deve ser diminuído nessa vida pelos afetos, e por compartilhar o seus afetos com quem escolher.

O amor homossexual é vítima de preconceito ao longo dos séculos! E eu cito aqui três exemplos emblemáticos.

Em 1521 as Ordenações Manuelinas previam que os homossexuais deveriam ser condenados à morte na fogueira, ter os seus bens confiscados, e duas gerações seguintes da família dele seriam infames.

Outro exemplo, em 1876 Oscar Wilde escreve um poema belíssimo chamado O amor que não ousa dizer o seu nome, em que confessa a sua paixão homossexual. Oscar Wilde foi condenado a dois anos de prisão e a trabalhos forçados em razão dessa poesia e de sua orientação sexual. [nota 1]

E um terceiro exemplo. Na década de [19]70, um soldado [norte-]americano condecorado na guerra do Vietnã assume a sua homossexualidade e é sumariamente desligado das Forças Armadas e produz uma frase antológica. Por matar dois homens, recebi uma medalha. Por amar outro, fui expulso das Forças Armadas.

Essa é, senhor presidente, senhores ministros, a história de um preconceito que vem ao longo dos séculos. Mas a história da civilização é a história da superação dos preconceitos. E a cada momento histórico as pessoas tem de escolher de que lado vão ficar da história. Se vão avançar o processo social e incluir todos, ou se vão parar o processo social e cultivar o preconceito.

De modo que é possível decidir essa questão olhando para trás, onde se avistam milhões de judeus que foram massacrados em campos de concentração. Milhões de negros que foram transportados a força em navios negreiros. Mulheres que atravessaram os séculos oprimidas moral e fisicamente pelas sociedades patriarcais. Deficientes que foram sacrificados. Índios que foram dizimados.

Em cada fase da vida, em cada fase da história existe sempre uma racionalização para justificar o preconceito.

Mas é possível também julgar essa matéria olhando para frente, e não para trás. Olhando para a criação de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa, de um tempo de fraternidade, de um tempo de delicadeza.

Um tempo em que todo amor possa ousar dizer o seu nome.

E portanto senhor presidente, senhores ministros, essa é uma tarde de gala para esse tribunal, porque ela representa a possibilidade de uma virada histórica, de superação, de um preconceito. E o mundo nos contempla ansiosos pela decisão que será proferida por esse tribunal.

Passo aos fundamentos jurídicos do pedido do senhor governador do estado do Rio de Janeiro.

Não sei ressaltar [o quanto é] corajoso pedido do governador do estado do Rio de Janeiro, que se dispôs a propor essa ação quando nenhum dos legitimados àquela altura havia ainda se habilitado. Correndo todos os riscos políticos de um agente eletivo para defender uma tese, uma tese que é a tese de defesa das minorias. Mas certamente sabia o governador, como na frase feliz de Amyr Klink, “na vida, o maior naufrágio é não partir“. E portanto sua excelência ousadamente propôs essa ação que se fundamenta nas seguintes visões de mundo que compartilho com vossas excelências.

Primeira, a homossexualidade é um fato da vida! É uma circunstância pessoal. É um destino.

Segundo lugar, porque existe a orientação sexual homossexual existem as uniões homoafetivas porque as pessoas tem o direito de amar, e tem o direito de compartilhar seus afetos.

Mas a ordem jurídica não contém uma ordem específica que cuide das uniões homoafetivas. E é por isso que se está aqui, nesse tribunal, e o governador do estado do Rio de Janeiro pede a vossas excelências que reconheçam que as uniões homoafetivas devem ter o mesmo regime jurídico das uniões estáveis convencionais. E isso por duas ordens de razão. Um: porque um conjunto impressionante de princípios leva a essa constatação. Dois: por simples analogia.

E passo, senhor presidente, a deduzir, brevissimamente, quais são esses princípios.

O primeiro deles, por óbvio, o princípio da igualdade. O princípio da igualdade explica que as pessoas tem direito a igual respeito e consideração. Significa que as pessoas tem o direito de serem reconhecidas na sua identidade, ainda que representem minorias. Ora bem, os pressupostos de uma união estável homoafetiva são rigorosamente os mesmos de qualquer união estável: o afeto e o projeto de vida em comum. De modo que não reconhecer as mesmas consequências dessas uniões homoafetivas significa depreciar essas pessoas. Significa dizer que o afeto delas vale menos, e que o estado não precisa reconhecer e respeitar as suas relações, e pode tratá-las com desprezo. Isso viola o aspecto mais essencial da ideia de igualdade de as pessoas não serem discriminadas por um fundamento fútil, sem um fundamento razoável.

O segundo princípio é o princípio da liberdade. As uniões homoafetivas e a homossexualidade são fatos lícitos. A liberdade em sentido geral significa fazer poder fazer aquilo que a lei não interdita. E a liberdade, na sua dimensão mais nuclear, é a autonomia privada. É o direito de cada pessoa fazer as suas valorações morais e fazer as suas escolhas existenciais. O Estado não tem o direito de interditar o direito fundamental de uma pessoa de escolher uma pessoa maior e capaz, duas pessoas maiores e capazes, escolherem onde vão colocar o seu afeto e o caminho que querem percorrer para a sua própria felicidade.

E o terceiro princípio é o princípio da dignidade da pessoa humana, já lembrada pelo Dr. Gurgel, que na sua expressão mínima, compartilhada pelo mundo, significa que ninguém nesse mundo deve ser tratado como meio para realização dos projetos alheios. As pessoas devem ser tratadas como fins em si mesmas, e consequentemente impedir uma pessoa de colocar o seu afeto e a sua sexualidade onde está o seu desejo é o mesmo que lhe aprisionar-lhe a a alma. É instrumentaliza-la ao projeto dos outros, às metas coletivas… É impedir esta pessoa de existir na plenitude da sua liberdade: de ser, de querer e de pensar. Viola a dignidade da pessoa humana, impedir que ela coloque seus afetos aonde tem o seu desejo, e seja respeitada por isso.

A outros princípios como da segurança jurídica, mas eu preciso ir adiante, para dizer que ainda que não fosse pela aplicação direta desses princípios, dever-se-ia aplicar o mesmo regime da união estável à união homoafetiva por simples analogia. Não há norma expressa na Constituição, não há norma expressa na legislação ordinária portanto há uma lacuna normativa. A jurisprudência tem, então, esse lado: alguns acordãos entendem que deve se tratar como uma sociedade de fato e outros acordãos entendem que deve se tratar como uma união estável.

Uma pergunta muito simples: duas pessoas que cometem a sua vida num projeto afetivo, um projeto de vida em comum, elas estão numa sociedade de fato, como uma barraca na feira, ou elas estão em uma união estável, com um projeto de vida em comum, uma unidade familiar? Só um preconceito mais inconfessável poderá deixar de reconhecer que a proximidade, a analogia maior, é com a união estável.

Torna-se crucial aqui enfrentar o artigo 226 parágrafo 3º da Constituição, que diz, “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.

Esse dispositivo, senhores ministros, como saberão, foi o ponto culminante da emancipação das mulheres, que eram tratadas como seres inferiores quando não fosse casadas. A mulher não casada era vítima do preconceito, e esse dispositivo foi a superação dessa discriminação. O tratamento da mulher não casada que vivia conjugalmente com alguém, como os senhores se lembrarão, eu me lembro, era, primeiro, direito algum! Depois, alguns direitos previdenciários. Depois alguns direitos patrimoniais. Até chegar a união estável.

Esse dispositivo é a consagração da emancipação feminina, que passa ter a sua relação conjugal relação conjugal respeita mesmo que não seja protegida pelo casamento. É um dispositivo de inclusão! É um dispositivo anti-discriminatório! Interpretar o artigo 226 parágrafo 3º como sendo um fundamento para discriminar os homossexuais é trair a inspiração dessa norma. É trair o espírito da norma. É trair o fim da norma. É mais ou menos como condenar alguém com base na lei de anistia. É um absurdo completo. Portanto, esse dispositivo está aqui para incluir as mulheres, e não para excluir os homosexuais e as relações homoafetivas.

Das quais o constituíte não cuidou, e por essa razão nós precisamos resolver essa questão com base nos princípios constitucionais ou na analogia.

Alguém poderá dizer que esta é uma matéria que deveria ser solucionada pelo legislador ordinário, pelo Congresso, e não pelo Supremo Tribunal Federal. Seria um equívoco rematado pensar isso. É claro que o legislador pode disciplinar a matéria desde que não viole o direito fundamental. Mas em nenhuma democracia do mundo o direito fundamental de negros, de mulheres, de homessexuais pode depender do processo político majoritário. As minorias são protegidas é por tribunais constitucionais. Peja jurisdição constitucional. Por juízes corajosos que dizem ao processo político majoritário [que] mesmo que vocês não estejam respeitando essa minoria nós, em nome da constituição, impomos o respeito a elas.

E o respeito a essas minoria significa tratá-las da mesma forma que se trata a união estável.

Eu, antes de encerrar, gostaria de dizer uma palavra que considero muito importante, de maior respeito e de maior consideração, às pessoas que por convicção religiosa, ou por qualquer outro fundamento legítimo não compartilham das ideias que eu aqui estou sustentando nessa tribuna. E não tenho eu aqui a pretensão de mudar a convicção nem a fé de qualquer pessoa. O que faz a beleza de uma democracia, de uma sociedade plural e aberta é a possibilidade de convivência harmoniosa de pessoas que pensam de maneira diferente. Nos estamos aqui portanto falando tolerância. Nós estamos falando de respeito ao diferente. Mas não de abdicação de convicções, que cada um merece respeito naquilo que escolheu professar.

E aqui concluo, senhor presidente, com o argumento que me parece o mais importante de tudo o que eu lhes disse, disse às vossas excelências até aqui, que é a regra de ouro: “Faz aos outros o que deseja o que te façam“.

Eu tenho, como alguns dos senhores saberão, um filho de 12 anos. Que está entrando na puberdade. Minha mulher e eu o educamos dentro de uma cultura convencional, dentro de uma tradição heterossexual, porque o humanismo não existe que seja hipócrita. E portanto a vida, integrando as maiorias, é um tanto mais fácil. Porém, senhor presidente, senhores ministros, se a vida, pelos seus desígnios, levasse o meu filho por um caminho diferente, eu gostaria que ele fosse tratado com respeito e consideração.

Com igual respeito e consideração.

E que fosse acolhido pelo ordenamento jurídico. E que pudesse viver em paz. Em segurança. E ser feliz.

E se é isso que eu desejo para o meu filho, evidentemente é isso que eu devo desejar para todas as pessoas. Essa é a regra de ouro. Que está no coração do judaísmo, que está no coração do cristianismo, na ética kantiana, na boa fé objetiva, e é a única forma de se fazer o bem.

Por essas razões, senhor presidente, o governador do estado do Rio de Janeiro pede à vossas excelências que acolham o seu pedido e que permitam que no âmbito da administração pública do estado do Rio de Janeiro as uniões homoafetivas e as uniões estáveis sejam tratadas com igualdade.

Muito obrigado.

 

 

Notas

Todas o grifos e sublinhados são meus, assim como em grande parte a presença (e omissões) de exclamações.

[1] Em verdade, a frase final de um poema chamado Two Loves, de 1984, cuja famosa frase aparece no julgamento, ao qual Wilde responde inspiradamente, mas que nada ajuda no seu caso.