As palavras aqui são “resultado fiscal”

Pessoal, deixe-me apresentar um gráfico que vocês não verão em nenhum outro lugar.

2010-11-29-resultado-e-juros-governo-central

Claro, que o gráfico acima exige alguma explicação. Como brasileiro atípico que sou, eu recebo o boletim do Resultado do Tesouro Nacional, que apresenta, entre várias outras coisas, séries históricas de receitas e despesas do governo, de uma forma despudoradamente simples, para não dizer cruel.

Em particular, as séries do Resultado Primário lançam todas as principais receitas e despesas do governo, com especial destaque as alguns nomes muito conhecidos: impostos, Previdência Social, folha de pagamento… Até mesmo a receita da recente capitalização da Petrobrás, frequentemente lembrada como um artifício atípico injetado na receita do governo aparece lá, em uma rubrica separada!

Enfim. No gráfico acima só coloquei duas das séries do Resultado Primário, que não por acaso são as últimas do documento, apresentadas em separado: Juros Nominais e Resultado Nominal do Governo Central.

“Nominal” aqui significa o número cru. Nada de ajustes inflacionários. Receita é dinheiro depositado, despesa é dinheiro sacado, pura e simplesmente [1]. Ao se desenhar esses números diretamente, o que se obtém se parece mais com o resultado de um terremoto num sismógrafo que o curvas de forças econômicas complexas. Por conta disso, apliquei uma simples normalização: soma aritmética dos últimos 12 meses. Os dados começam em Janeiro/1997, mas o meu gráfico começa em Dezembro/1997, primeiro mês com um ano fechado. Todos os meses seguintes, portanto, apresentam o fechamento de anos “virtuais”, mês a mês.

Se ainda não expandiu o gráfico, eis um bom momento. A primeira informação nítida que se tem é que o governo é quase sempre deficitário. Além de deficitário, pode se ver claramente a altíssima correlação entre a curva da despesa de juros e o respectivo resultado final. Nenhuma novidade, afinal os juros entram no cômputo do resultado [2].

Ainda assim, observem que algumas outras coisas saltam aos olhos, num segundo relance. Ao contrário do que se imaginaria, os juros não sobrem em escalada geométrica, como poderia se esperar de uma entidade sempre deficitária.

Mais que isso, o gráfico acima mostra que o Resultado Nominal chega a ser positivo em um ponto (Outubro/2008, R$ 24 milhões). Esse ponto, em particular, é muito interessante [3], mas não é o mérito da questão que eu quero levantar. Lembro de novo que o gráfico é uma soma simples dos últimos 12 meses. Assim, caso tivesse-mos o hábito de fechar contabilidade o ano em Outubro, ao invés de Dezembro, provavelmente teríamos mais uma comemoração “nunca antes nesse país”, por conta de um ano de superavit nominal.

Repitam comigo: Brasil, superavitário nominal.

Para quem a expressão acima faça profundo sentido, das duas, uma: ou acha que eu estou delirando ou já está baixando os dados linkados acima para conferir isso que eu falei. Para quem não entendeu, uma palhinha: Os fechamentos de Janeiro/2006 a Outubro/2008 mostram um governo brasileiro impossivelmente incomum, na nossa história recente. Um país que apesar de deficitário ainda vê o componente juros “maquiavélico-capitalista-com-mortes” paulatinamente diminuído com o tempo, ao mesmo tempo que o resultado primário rapidamente vai se convertendo em resultado nominal positivo, numa guinada com ares de curva geométrica. Ou em palavras mais diretas, o País do Futuro de fato virou o País do Presente naquele fatídico fechamento contábil no já longínquo Outubro de 2008.

“Tá”, se perguntarão todos, “mas porque isso não foi comemorado?”. Bom… eu ofereço duas respostas, ambas relacionadas a esses meses em particular.

A primeira resposta, e a mais conspiracionista, é que simplesmente não havia espaço na grande mídia para outra coisa que não fosse a já então tenebrosa crise do sub-prime. E não era por menos, dado que essa bagunçada toda ainda nos assombra, mesmo já tendo 2 anos.

A segunda resposta, bem mais caridosa, é que não havia o que se comemorar, de fato. Ou se comemorado, seria uma celebração pífia, porque a crise em evidência ia destruir esse resultado logo a seguir. “Dãh”, dirão todos, “é só olhar os governos da Europa pedindo caneco um atrás do outro para ter uma noção disso”. Sim, e ainda assim, peço novamente que olhem o gráfico acima. Uma coisa é olhar a experiência alheia, mas ai em cima aparece bem nitidamente o efeito que a crise causou em nós, brasileiros.

De Outubro/2008 a Outubro/2009 o que vemos no gráfico é a deterioração do resultado do governo. Mais que isso, podemos ter uma boa noção que muito dessa deterioração ocorre nos componentes da receita mais que nos componentes dos juros. E independente da origem, a queda é certa, é direta, e é fulminante. E, acreditem-me, essa drástica queda é realmente muito leve se comparado ao que foi e está sendo visto nos países da zona do euro.

Talvez isso que não seja tão intuitivo. Mesmo porque é necessária uma perspectiva histórica enorme para entender que os países se metem em confusões no mercado financeiro principalmente por problemas de receita que (comparativamente) problemas de despesas ou juros.

Falei de persistência, mas um outro fator bem anti-intuitivo é o efeito “delay”. Notem que a crise já estava escancarada meses antes de Outubro/2008, e mesmo assim o resultado do governo progrediu. O mesmo vale no sentido inverso. Mesmo com a economia brasileira dando sinais de crescimento no começo de 2009, ainda assim os efeitos nos resultados levaram meses e meses até se inverterem novamente.

Esse parágrafo último nem estava planejado no meu post original, mas conversando sobre esses dados com um amigo ele me pediu um exercício de futurologia deveras específico, no caso, a minha opinião se o atual governo vai ou não cumprir a história de zerar o défict público em 4 anos, mesmo contra o ceticismo de todo mundo [4]. E depois de pensar um tanto, lembrar daquele isolado ponto não negativo no gráfico, de como o financiamento público brasileiro é bem mais técnico hoje, de como as despesas ainda são um sarapetel político, e que o delay é sim um componente estrutural importantíssimo, respirei fundo e admiti, em voz alta, “Sim, apesar dos pesares, pode funcionar sim.”

Não será fácil, nem será simples. E, ainda assim, tenho lá a convicção que as coisas, ainda que por caminhos tortos, vão ficar melhores.

Tomara!

Notas

[1] Análises históricas e corretas demandariam ajustes de sazonialidade e deflatores por PIB ou inflação. O que só complicaria a análise por tornar os dados indiretos e incrivelmente místicos a muita gente. E é justamente por não ocorrer isso com essas séries que a beleza simples desses dados se mostra muito impressionante, e suas consequências de longo prazo, muito menos questionáveis.

[2] Para exercício dos interessados: ao se subtrair uma curva de pontos aleatórios de uma outra curva de pontos aleatórios, ambas altamente correlacionadas, o que se obtem? :)

[3] Aos grafistas e analistas técnicos de bolsa: e ai, compra ou vende, esse país, olhando para a curva de resultado nominal de Jan/2006 a Out/2008?

[4] Ceticismo justificado, comum e perfeitamente razoável, diga-se de passagem, embora um tanto confuso, no sentido que não está se realizando na sua versão mais descarada. Era mais ou menos isso que eu queria dizer com o “mais técnico”, só que agora aplicado aos resultados finais: Não importa qual seja a expectativa ou o verniz político da questão, os resultados efetivamente ditarão para onde irão os juros e o Brasil, com eles.